Diagnóstico e mudança: como rótulos podem nos aprisionar como correntes
- João André Rodrigues

- 8 de set.
- 4 min de leitura

Há um alívio legítimo em dar nome ao que sentimos. Diagnósticos podem possibilitar o cuidado, abrir portas e oferecer linguagem e sentido quando tudo está confuso. O risco começa quando o rótulo vira casa — confortável, mas sem janelas. Aos poucos, “sou assim por causa disso” escorrega de explicação para álibi, e a vida passa a girar em torno de uma etiqueta que dispensa o atravessamento que a mudança pede. Não é sobre negar nomes nem romantizar sofrimento; é sobre não confundir mapa com território. Rótulos organizam o ontem. Para seguir, é preciso espaço: notar onde aperta, sustentar pequenos ajustes possíveis, pedir ajuda quando for o caso e lembrar que afrouxar não é desistir — é criar folga para caminhar. A ironia é simples: o rótulo quer nos definir; o corpo só quer caber.
Mudar é difícil — e talvez ainda mais num tempo em que quase tudo ganha rótulo em segundos. Crescemos com modelos, representações sociais, que nos ajudaram a ter parâmetros e a nos localizarmos no mundo - dando sentido e significado, até começarem a apertar e desconfortar. Quando o corpo dá sinais — cansaço que não passa, irritação difusa, um aperto no peito, a sensação de estar sempre “um passo atrás” — a tentação é apertar também: mais regras, metas impecáveis, promessas de segunda-feira. E, para coroar, um diagnóstico: transformar nuances da experiência em identidades fixas e explicações de prateleira. Alivia por um instante; depois, sem que a gente perceba, pode nos roubar o movimento, a possibilidades múltiplas de experimentar a vida sem o "a priori".
É importante separar as coisas. Diagnósticos clínicos, feitos com rigor e ética, são ferramentas de cuidado e podem abrir caminhos a tratamento e direitos. Esta conversa não é contra diagnósticos; é contra o uso indiscriminado de rótulos como sequestro que não nos permite atravessar o desconforto que toda mudança pede. Quando um rótulo vira destino — “sou assim por causa disso, então não adianta tentar” — não exercemos a liberdade; assumimos uma história que nos mantém no mesmo lugar, congelados a resposta que confirmam o diagnóstico e não permitem a atualização de quem somos e como somos. O alívio da resposta rápida vira prisão sutil e tirânica: onde assumimos como nossa uma narrativa sobre nós, em relação ao que deveríamos ser segundo o que esperam ou achamos que esperam de nós.
Por que o diagnóstico é tão sedutor? Porque ele age como mediador das tensões entre o que é exigido de nós e o que conseguimos, podemos ou queremos entregar. Nomear possibilita alívio e pode dar a sensação de controle; mudar pede fricção, presença, atravessamento, enfrentamento e tolerância a frustração. Some a isso o ambiente das redes sociais, que oferecem respostas fáceis e identidades bem embaladas, e temos terreno fértil para a hiper-rotulação: checklists que prometem autoconhecimento instantâneo, vídeos que encaixam sofrimentos complexos em categorias simplificadas. E tudo isso com algoritmos criados para potencializar os cliques e visualizações, com intensões nem sempre claras e preocupadas com o rigor teórico-científico. Pertencer conforta — mas pertencer a um rótulo que nos esvazia de autoria cobra caro.
Na Gestalt-terapia, o foco não é “quem eu sou” como sentença, e sim “o que está acontecendo comigo agora?” E “de que apoio preciso para o próximo passo possível?” "Quais forças estão agindo no campo fenomenológico?", "Que interesses estão envolvidos?". Rótulos podem funcionar como mapas provisórios para nos orientar quando estamos perdidos e confusos, o problema é tratá-los como território. Se hoje um termo te ajuda a dar nome ao que dói, acolha o alívio — e não pare aí. Escute o corpo (onde aperta, onde expande), observe o contexto (o que amplia, o que estreita), repare no ciclo das necessidades (o que pede contato, o que pede fronteira), reconheça no campo quais intencionalidades consideram meu bem estar e quais estão a nos usar como ferramentas para um fim que não nos considera como importantes e relevantes. Afrouxar, aqui, não é desistir: é criar folga para respirar, ver com nitidez e sustentar escolhas que pedem coragem para agir e gerar a mudança.
Geralmente, mudança nasce do espaço. Em vez de mais aperto, um gesto mínimo e honesto: uma pausa real entre tarefas; um pedido de ajuda específico; um ajuste de prazo que cabe na vida como ela é hoje; um “não” claro para sustentar o “sim” que importa.
Não precisamos de um campo infinito para nos mover — precisamos de honestidade para nomear o terreno e as forças presentes nele - precisamos de consciência e de presença para caminhar com o tamanho do passo que é possível agora. A dúvida e o medo não desaparecem, mas fica respirável quando tem lugar à mesa.
Se o diagnostico tem servido de abrigo nos dias frios, que seja abrigo temporário — não a casa inteira. O que amadurece é o encontro franco com a realidade tal como ela se apresenta: reconhecer limites, cuidar do que dói, entender o que está relacionado com essa dor, criar condições para experimentar algo diferente amanhã. Antes de acrescentar mais uma explicação sobre si que muitas vezes não considera você, pergunte-se: que espaço posso abrir agora para que este incômodo respire e se transforme? Às vezes não falta força — falta folga, consciência e parceria.
O que não pode faltar ao processo de mudança é a disponibilidade intencional, autêntica e corajosa para o diálogo consigo e com os outros - é a partir dele que tudo se torna possível.
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João André — Gestalt-terapeuta, cofundador de Maturar.com



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