
Nos últimos anos, temos assistido a uma explosão de diagnósticos psiquiátricos e ao aumento exponencial do consumo de psicofármacos. O que antes era considerado parte da experiência humana – tristeza, ansiedade, desmotivação – hoje se transformou rapidamente em "doenças" a serem tratadas com medicação.
Mas será que estamos realmente cuidando da nossa saúde mental ou apenas silenciando sintomas para seguir funcionando dentro de um sistema que exige produtividade constante e conformidade a um modelo de ser que, ironicamente, nos adoece?
O que acontece quando o sofrimento psíquico deixa de ser compreendido como parte de nossa condição humana e passa a ser um problema a ser resolvido o mais rápido possível? E mais: a quem interessa essa urgência em medicalizar emoções?
🔍 A MEDICALIZAÇÃO DA VIDA: UMA SOCIEDADE QUE NÃO PODE SENTIR
A ideia de que toda emoção intensa precisa ser medicada não surgiu espontaneamente. Como apontam Illich (1975) e Conrad (2007), o avanço da biomedicina tem feito com que cada vez mais aspectos da vida humana sejam transformados em problemas médicos. Mas essa transformação não ocorre de maneira neutra. Há interesses econômicos e políticos por trás dessa ampliação do que chamamos de “transtornos mentais”.
Quando sentimentos naturais da existência, como luto, ansiedade e insegurança, são rapidamente rotulados como distúrbios, passamos a olhar para nós mesmos como falhos, como se algo em nosso funcionamento estivesse fundamentalmente errado e precisasse ser corrigido. Essa perspectiva ignora que vivemos em um mundo que nos impõe exigências impossíveis de serem cumpridas sem sofrimento.
O modelo capitalista contemporâneo, ao enfatizar a produtividade e a performance ininterrupta, não permite pausas para elaboração emocional. Diante disso, a solução mais rápida e lucrativa para um sistema que não pode parar é a medicalização. Não há tempo para reflexão, para questionamento, para entender o que dentro da sociedade está gerando tanto sofrimento. Apenas há tempo para controlar sintomas e seguir funcionando.
Como aponta Nikolas Rose (2007), a biomedicina moderna não apenas molda nossas identidades, mas nos afasta dos processos essenciais da experiência humana. Assim, deixamos de ver nossas angústias como parte da vida e passamos a considerá-las falhas individuais, que devem ser corrigidas para que possamos continuar cumprindo nossas funções sociais.
💊 PSICOTRÓPICOS: CURA OU CONTROLE?
Os medicamentos psiquiátricos desempenham um papel importante no tratamento de transtornos mentais graves, mas é inegável que, na prática, seu uso tem se expandido para além do necessário. Hoje, é comum que psicotrópicos sejam prescritos não para tratar condições que realmente demandam intervenção medicamentosa, mas para que possamos continuar funcionando em um ritmo que nos esgota.
A grande questão é: será que estamos tratando realmente o que precisa ser tratado? Ou será que, muitas vezes, essas substâncias são usadas como ferramentas para a manutenção da produtividade dentro de um sistema que não se importa com o que possa estar produzindo a dor, mas apenas que não deixemos de produzir o que é esperado?
Em outras palavras: será que queremos nos sentir melhor ou apenas voltar a cumprir nossas funções no mundo do trabalho, na família e nas redes sociais sem aparentar fragilidade?
Não por acaso, o consumo de psicofármacos tem aumentado significativamente, especialmente entre as mulheres. Estudos (Dimenstein & Carvalho, 2003) indicam que elas são as principais consumidoras de ansiolíticos e antidepressivos. Isso levanta um questionamento fundamental:
Será que há algo na biologia das mulheres que as torna mais predispostas ao sofrimento emocional?
Ou será que a estrutura social, que impõe sobre elas múltiplas cargas e expectativas irreais, está gerando um sofrimento que não pode ser tratado apenas com remédios?
A resposta parece estar menos na biologia e mais na maneira como a sociedade está organizada.
🔎 O QUE ESTAMOS TRATANDO COM REMÉDIOS?
Quando uma mulher, sobrecarregada pelo trabalho, pela maternidade e por padrões de comportamento opressivos, busca ajuda psicológica e recebe uma prescrição de antidepressivos, o que está sendo tratado? Seu sofrimento individual ou a estrutura social que a adoece?
Quando uma criança inquieta é diagnosticada com TDAH e recebe medicação para que possa "se concentrar melhor", estamos cuidando dela ou apenas fazendo com que ela se encaixe melhor em um sistema educacional que não permite diversidade de aprendizagem?
O problema não está no medicamento em si, mas na forma como ele se tornou a principal resposta para questões que não são essencialmente médicas.
Como alerta Amarante (2024), a medicalização excessiva transforma a vida em um problema técnico. Assim, deslocamos o foco do que realmente importa – as condições sociais e psicológicas que geram sofrimento – e colocamos a responsabilidade apenas no indivíduo.
⚠️ O PERIGO DE NÃO SENTIR
Se existe uma coisa que a cultura contemporânea parece não tolerar, é a vulnerabilidade. Mas o sofrimento faz parte da experiência humana. Ele não precisa ser romantizado, mas também não pode ser tratado como algo a ser erradicado a qualquer custo.
Ao transformar todas as dores em doenças, perdemos a capacidade de aprender com elas. Perdemos o espaço para compreender o que está errado em nossas vidas e no mundo ao nosso redor. E, acima de tudo, perdemos a oportunidade de mudar as estruturas que nos fazem sofrer.
Como disse o psiquiatra espanhol David López (2024), em entrevista ao El País:
"Talvez o que você precise não seja um antidepressivo, mas um grupo de amigos que realmente te escutem."
A questão é: o mundo nos permite isso? Ou nos empurra para soluções rápidas que garantam que sigamos funcionando sem questionar?
⚠️ PSICOLOGIA E O PERIGO DE SE ALIAR À MEDICALIZAÇÃO
Se a psiquiatria muitas vezes age como um instrumento direto da medicalização, a psicologia, por sua vez, nem sempre escapa dessa lógica. Embora tenha surgido como uma ciência do cuidado subjetivo e da transformação, a psicologia, em muitos contextos, se alinha à normatização e à estigmatização, tornando-se uma peça importante na engrenagem que rotula, separa e classifica.
1️⃣ Quando a Psicologia Se Torna Braço do Mercado
Paulo Amarante (2024) alerta para o risco de a saúde mental ser capturada por uma lógica mercadológica, onde o objetivo não é o bem-estar genuíno, mas a manutenção de uma força de trabalho minimamente funcional. Psicoterapias rápidas, voltadas para a "resolução de problemas" e para a "adaptação ao meio", acabam reforçando a mesma mentalidade que sustenta o uso indiscriminado de medicamentos: é preciso tratar logo para que o sujeito volte a produzir.
Isso se reflete na explosão de terapias breves e comportamentais, que, em vez de questionarem a estrutura que gera sofrimento, buscam fazer com que o indivíduo se adeque a ela. Quando a psicologia perde seu olhar crítico e histórico, ela deixa de ser um espaço de transformação para se tornar um serviço que ajusta indivíduos às demandas do mercado.
2️⃣ A Psicologia e os Diagnósticos Massificados
A explosão de diagnósticos também tem sido alimentada por um viés psicológico que muitas vezes busca validar cientificamente o sofrimento humano, enquadrando-o dentro de categorias rígidas. Como alerta Conrad (2007), a psicologia, em muitos casos, serve como legitimadora da medicalização, ajudando a expandir as fronteiras do que é considerado patológico.
Na prática clínica, isso pode significar que:
Crianças inquietas são diagnosticadas com TDAH sem uma análise aprofundada de seu contexto social e familiar.
Sentimentos de inadequação são enquadrados como "transtornos de ansiedade", sem que se questione as condições que geram essa angústia.
Mulheres sobrecarregadas são medicadas para depressão em vez de se discutir como a sociedade explora emocional e fisicamente seu trabalho.
Essa lógica pode criar um ciclo vicioso onde as pessoas não encontram alternativas reais para lidar com seu sofrimento além da psiquiatria e do consumo de serviços psicológicos normativos.
3️⃣ Psicólogos Influenciadores e a Cultura da Autoajuda
Outro fenômeno recente é a ascensão da psicologia de Instagram, onde discursos superficiais e simplificados sobre saúde mental reforçam a medicalização e a lógica do "conserto rápido". Termos clínicos são usados indiscriminadamente, criando um efeito de "psico-coach" que vende a ideia de que todos devem estar constantemente em busca de otimização emocional.
Esse fenômeno reforça:
✅ A ideia de que qualquer desconforto emocional deve ser tratado como um problema psicológico.
✅ A noção de que o indivíduo, e não a sociedade, é o responsável exclusivo por sua saúde mental.
✅ A crença de que felicidade e bem-estar são produtos a serem alcançados através de técnicas específicas e mercantilizadas.
O problema não é a popularização do discurso psicológico, mas a forma superficial e acrítica como ele vem sendo conduzido.
🌱 ENTÃO, QUAL O CAMINHO?
A crítica à medicalização não significa negar a importância da psiquiatria ou da psicologia, mas sim questionar um modelo que nos impede de olhar para nós mesmos de forma mais ampla. Em vez de focarmos apenas no sintoma, podemos nos perguntar:
🔹 O que esse sofrimento está tentando me dizer?
🔹 Como minhas relações e meu contexto influenciam o que estou sentindo?
🔹 Existe algo na minha rotina, no meu trabalho ou nos meus relacionamentos que pode estar contribuindo para esse mal-estar?
🔹 O que aconteceria se, em vez de silenciar essa dor, eu a escutasse com mais atenção?
A psicoterapia surge como um espaço onde é possível explorar essas questões sem pressa e sem rótulos. É um convite para entender que nem todo incômodo precisa de um diagnóstico e nem toda tristeza precisa de um remédio. Às vezes, o que falta não é um comprimido, mas um espaço para sentir, elaborar e transformar.
🔹 E você? Já sentiu que estava medicando algo que, na verdade, precisava ser compreendido? Compartilhe sua experiência! 💬⬇️
📚 Referências Bibliográficas:
Amarante, P., & Whitaker, R. (Orgs.). (2024). Desmedicar: A luta global contra a medicalização da vida. São Paulo: Zagodoni.
Caponi, S., Verdi, M., Brzozowski, F. S., & Hellmann, F. (Orgs.). (2010). Medicalização da Vida: Ética, Saúde Pública e Indústria Farmacêutica. Palhoça: Editora Unisul.
Conrad, P. (2007). The Medicalization of Society: On the Transformation of Human Conditions into Treatable Disorders. Baltimore: The Johns Hopkins University Press.
Dimenstein, M., & Carvalho, L. de F. (2003). O modelo de atenção à saúde e o uso de ansiolíticos entre mulheres. Estudos de Psicologia (Natal), 8(3), 407-414.
Illich, I. (1975). Nêmesis da Medicina: A Expropriação da Saúde.
Rose, N. (2007). The Politics of Life Itself: Biomedicine, Power, and Subjectivity in the Twenty-First Century. Princeton: Princeton University Press.
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